domingo, novembro 14, 2010

Crônica 13


(foto: web)

CADA MACACO NO SEU TEMPO

Pretos, amarelos, vermelhos, brancos, relaciono-me com seres de qualquer raça... e até o faria com os verdes, se surgirem por aí.

Li outro dia um artigo da Lya Luft defendendo o escritor Monteiro Lobato, que ultimamente tem sido tachado de racista pelo Conselho Nacional de Educação. Estou em pleno acordo com a Lya. Lobato, esse ser genial e criador de uma imensa obra literária, não apenas incentiva a leitura no Brasil, como também enriquece a imaginação de milhares de pessoas no país, especialmente a das crianças, através do seu forte dom de encantamento. Um ser fantástico como ele jamais poderia ser considerado um racista. Digo isso não apenas como seu fiel fã, mas como a criança que fui, e que sempre serei, sem dúvida com a sua colaboração.

Voltemo-nos para suas fábulas povoadas de monstros, crianças, princesas, negros, anjos, coronéis, piratas, fadas, índios, domésticas, lavradores, brancos, sinhás, bonecas, sabugos, animais, velhos etc... perceberemos a tamanha injustiça que vem sendo cometida com o idealizador desse elenco pluralíssimo, ao ser tratado com tão pesado e adjetivo.

Dizem que a frase estopim para tal euforia anti-racista em voga foi a constante no trecho do capítulo "O Assalto das Onças", da obra "Caçadas de Pedrinho", publicada em 1933: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão, pelo mastro de São Pedro acima (...) parecia nunca ter feito outra coisa na vida".

Antes de criticarmos Monteiro Lobato, vamos conhecê-lo. Ele nasceu em 1882, e no ano da abolição "oficial" da escravatura, 1888, contava com apenas seis anos de idade. Digo oficial, pois na prática a escravidão não sumiu da noite para o dia, os seus resquícios duraram décadas. Sendo assim, certos termos registrados nos livros do autor têm que ser considerados como costumeiros para uma pessoa que presenciou essa histórica transformação social. O fato de ele se referir a uma personagem negra como "macaca de carvão", nada mais é que um hábito vocabular do seu passado infantil, e bem passado por sinal. Concordo que hoje tais termos soam ofensivos à raça negra.

Por outro lado, o escritor sempre valorizou seus personagens negros em inúmeros episódios de sua coletânea. Seja o Saci Pererê, o Tio Barnabé e a própria Tia Nastácia, todos eles já foram retratados como verdadeiros heróis em suas diversas aventuras. No trecho supostamente "racista" do autor, notamos que, ao contrário do que vem sendo sugerido por aí, há uma verdadeira exaltação positiva da Tia Nastácia que, mesmo acometida dos males da idade, é elogiada por sua agilidade e habilidade impressionantes, e assim comparada a um animal que possui idêntica destreza, no caso o macaco. No que diz respeito à expressão “de carvão”, ela tem a ver com a cor da pele negra da personagem, mas por que seria ofensiva tal comparação? Trata-se apenas de uma mera conotação, como é o caso do “piche”, por exemplo.

Voltemos às outras cores, bichos e pessoas. Se uma pessoa é oriental, é chamada de amarela. Se é branca, é desbotada ou anêmica. Se é indígena, é vermelha ou camarão. Se é mulata, é sapoti ou jambo. Minha própria avó, que era branca e que possuía inúmeras manchas escuras no rosto, adquiridas com o tempo, se auto-intitulava de "onça pintada". Não são as palavras que ofendem, são como e quando elas são utilizadas. Acredito que a intenção de Monteiro Lobato não era a de diminuir ninguém, apenas descreveu a sua querida personagem em um ato de bravura. Para alguns, tais termos utilizados pelo autor o incriminam por racismo. Isso é algo sério e que pode levar ao banimento nas escolas e bibliotecas da riquíssima obra literária desse artista que há décadas já não está mais conosco para se defender ou se justificar. Isso seria justo?

O que é o racismo afinal? Buscando os vários significados desse polêmico termo encontrei-o como "crença da existência", "tendência de pensamento", "representação", "conjunto de opiniões pré-concebidas", "preconceito", "sistema", e até "doutrina". Não importa o seu significado, mas sim a sua aplicação e suas possíveis consequências.

A humanidade passou por inúmeras provocações raciais na sua história, e todas elas, de alguma maneira, deixaram resíduos nos comportamentos dos homens atuais. Temos que ser extremamente compreensivos quando nos deparamos com uma suposta situação que julgamos racista, para ver até que grau ela é ofensiva ou não. O vocabulário popular, independente da nação, está em constante mutação. Expressões são abolidas, outras incorporadas, e outras transformadas, ao longo do tempo, na língua do povo e pelo próprio povo. E é essa língua popular uma das principais ferramentas utilizadas pelo incomparável Monteiro Lobato. Ao invés de recriminá-lo, deveríamos reverenciá-lo pelo seu legado, para não sermos comparados com outro personagem do autor: o burro falante!

(texto: Mario Gordilho)

Música: "Como o Macaco Gosta de Banana" - João Penca e os Miquinhos Amestrados (1993)

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